sábado, 22 de março de 2014

Vai entender!

Certas coisa, demoram-se a se-deixar entender. Outras tantas, nem na beirada finita da vida, serão compreendidas.
Mas daqui até lá, de tudo um pouco tem me surpreendido.
A poesia bem cantada em melodia volta e meia cala essa boca malcriada.
Ou mesmo o cusco passado, que me lambe o pé numa leitura de parque e vai embora sem se explicar, me estarrece. Ora! Assim não dá! Vai entender!
Só que a vida é assim mesmo. Te dá de tudo e não explica nada. Eu mesmo, há menos de um ano, recebi a menos explicável das surpresas. Alguém anunciou: Jê, isso é amor! Eu, cético que sou, vibrei: é loucura!
E de lá pra cá, não entendi mais nada.
É que as surpresas da vida não são explicáveis. Outro dia, ganhei um livro da minha doce loucura que, confesso, não empolgou nem ler o título.
Pois não é que ele também trazia o quê sem porque. Eis um poema do livro:

Poema Mais Ou Menos De Amor

Eu queria, senhora,
ser o seu armário,
e guardar seus tesouros
como um corsário.
Que coisa louca:
ser seu guarda-roupa!
Alguma coisa sólida,
circunspecta e pesada
nessa sua vida tão estabanada.
Um amigo de lei
(de que madeira eu não sei).
Um sentinela do seu leito
- com todo o respeito.
Ah, ter gavetinhas
para suas argolinhas.
Ter um vão
para o seu camisolão
e sentir o seu cheiro,
senhora,
o dia inteiro.
Meus nichos
como bichos
engoliriam suas meias-calças,
seus sutiãs sem alças.
E tirariam nacos
dos seus casacos.
Ah, ter no colo,
como gatos,
os seus sapatos.
E no meu chão,
como trufas,
suas pantufas...
Seus echarpes,
seus jeans,
seus longos e afins.
Seus trastes
e contrastes.
Aquele vestido com asa
e aquele de andar em casa.
Um turbante antigo.
Um pulôver amigo.
Bonecas de pano.
Um brinco cigano.
Um chapéu de aba larga.
Um isqueiro sem carga.
Suéteres de lã
e um estranho astracã.
Ah, vê-Ia se vendo
no meu espelho,
correndo.
Puxando,
sem dores,
os meus puxadores.
Mexendo com o meu interior
- à procura de um pregador.
Desarrumando o meu serpor
um prêt-à porter...
Ser o seu segréto,
senhora,e o seu medo.
E sufocar,
com agravantes,
todos os seus amantes.

(Luis Fernando Veríssimo)

Quase meio ano depois de ganhar o presente, fui entender sua função de presente de amor. E amei!
Porém.
Quase um ano depois de conhecer a loucura mais gostosa de sentir, sigo sem entendê-la nem na rotina dos "boa noites", mas vibro cada hálito doce dos "bom dias".
Quase uma hora depois do cão indiferente cair no horizonte, não entendi ainda sua compaixão dose única.
Têm coisas que não consigo entender!
Talvez lá no final, ranzinza, louco e careca, sentado de frente para o passado, numa epifania derradeira, a outra ponta da vida me explique seus pormenores.
Até lá, me-deixa vibrar!



quinta-feira, 9 de maio de 2013

As pedras sutis da submissão

     A luta feminista no Brasil não é nova. Destaca seus primeiros louros no fim do século XIX com o sufrágio das mulheres, depois segue sua luta pelos direitos trabalhistas e hoje luta ferozmente pela equiparação moral. Em outros países, a libertação feminina ainda é acanhada e calada pelo apedrejamento em praça pública. Prática horrível, não? Pensando bem, a diferença entre o Brasil e alguns lugares do Oriente Médio está apenas no terreno acidentado. Sorte das mulheres daqui que o solo brasileiro seja decorado de belas praias e florestas tropicais. Se lá a pedra dói, aqui é o pensamento que machuca.
     O movimento feminista brasileiro tem uma vitória importante: a liberdade do corpo. Biquínis e saia curta há 50 anos? sem chance! Mas a luta hoje é diferente - e as pedras usadas também. A famosa frase "lugar de mulher é no fogão" ainda é muito viva. Não dentro da academia, cerne do pensamento crítico (ou, pelo menos, deveria ser), mas no borbulho da sociedade. Sociedade essa ainda patriarcal.
     A frase opressiva é muito mais do que uma tradição patriarcal. É a pedra da submissão. A mulher hoje pode ir à praia de biquíni, mas quando voltar para casa, o fogão irá amordaçar sua epifania libertária. Ora essa! onde já se viu mulher que não sabe cozinhar? Não vai casar! Parece arcaico, mas ainda é ensinado pela sociedade. E essa é só uma das pedras usadas para calar. Nem vou entrar na questão sexual. Teria que escrever outras centenas de palavras e ainda assim estaria cometendo o engano de ser superficial em relação a esse ponto.
   
Quantas pedras serão ainda proferidas, quantas bocas serão ainda caladas e amordaçadas pelo pensamento patriarcal? ser feminista não me faz menos homem, pelo contrário, faz de mim um homem mais humano.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Qual sua palavra preferida?

            Um dia, alguém me perguntou qual palavra eu achava mais bonita. Esdrúxulo, eu disse! sim, esdrúxulo. Naquela época eu achava essa palavra simplesmente incrível. Imagine, você mulher, um homem proferindo em alto e bom tom a palavra esdrúxulo. Por certo, uma impetuosa vontade de ser tomada por aquele vociferador de proparoxítonas inundaria seu sistema nervoso central. Agora imagine você, caro Homo Sapiens de polegar opositor, ouvir a doce voz da mais cheirosa e meiga mulher, exclamando, segura de si, a palavra esdrúxulo. Eu sei! O Neanderthal babante adormecido pela evolução também tomaria conta do seu corpo.
           Pois bem! Ultimamente tenho tido fortes encontros com a minha mais nova linda palavra. Interpenetrar. Se a minha antiga palavra brilhava pelo impacto causado por quem a pronunciava, minha nova palavra encanta pela própria palavra. Interpenetrar! Penetrar não! Penetrar é uma palavra vulgar, intrusiva, feia de todo modo. Mas interpenetrar é a melhor das palavras! é consensual, é quase romântica. E é incrível porque ela me lembra todas as outras palavras bonitas que eu conheço. Equilíbrio, igualdade, completude. Interpenetrar é uma palavra completa por si só. Você nem precisa ouvir alguém falar a palavra. Basta imaginar.

            Tenho agora duas palavras incríveis como favoritas.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Quem são eles?


Irmãos? Não! Nem nasceram do mesmo pai, da mesma mãe. Mas sentem a alegria e zombam a chatice do outro.
Melhores amigos? Não! Conhecem-se há tão pouco tempo que amigos ainda não sabem se são. Confiam segredo, assim, pra ficarem mais íntimos e depois confiarem naquele que antes segredou.
Vizinhos? Não! hoje vivem longe, amanhã mais longe ainda, mas encurtam o caminho no primeiro oi do dia. E tão perto vivem que, mesmo longe, a qualquer hora do dia, batem porta do vizinho só pra ver se vai abrir.
Colegas? Não! Nem de classe, nem de quarto. Traçam certos seus próprios caminhos, mas nada impede que se encontrem logo ali.
Inimigos então? Tampouco! Nem se quer já brigaram de verdade. Ensaiam ansiosos o primeiro chispa, mas se demoram a prolongar o deixa disso.
Desconhecidos? Eu bem duvido! Já sabem tanto um do outro que têm a audácia de dizerem nele eu confio.

Quem são eles então? Sortudos! Nem bem se conheceram e já são felizes. Não têm tempo pra duvidar do futuro porque gozam horas demais aproveitando cada segundo.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Não

A festa, as luzes, a bebida, tudo dava um tom eufórico aquele momento. A cada música, dançavam mais próximos. Já podiam sentir o calor do corpo um do outro. E agora, ali pertinho, o mundo era bem pequeno e só cabiam dois. Dançavam uma sintonia marcada pela música.
Ele a trazia pra perto, ela escapava ardilosa.
Dizia com o corpo: não.
Mas seus olhos não podiam mentir e ele acreditava nisso. Já se conheciam há tanto tempo que ela podia mentir sempre que não estivesse olhando pra ele. Seus olhos sempre revelavam a verdade.
Ainda assim, ela dizia: não.
Sempre dissera não, afinal eram amigos. Mas já não pensavam como amigos, tampouco agiam de tal maneira. E se descuidavam ao se tocarem. A mão, o rosto, tudo tinha encontro marcado. A boca...
A boca dizia: não.
Ah que boca, pensava ele. Boca digna de uma ninfa. Vênus, a mais bela das ninfas. Saturno, com a maior das foices, corta seu pai, Céu, bem abaixo da barriga e suas genitálias caem na deusa Mar, nascendo Vênus.
Um sorriso fácil e solto sempre iluminava seu rosto quando ele lhe contava essa história.
Ele se aproximou tanto da boca dela que ainda pode ouvir um sussurro trêmulo e longo
nãão.
Os corpos já não mais dançavam, pouco se mexiam.
Inertes, a meio segundo de distancia, ele olha no olho dela, coloca a mão atrás de sua orelha e rompe o abismo entre o certo e o errado. Ela reluta, afasta a cabeça a altura dos olhos. Ele hesita, vacila:
- vou pegar uma bebida e ir embora.
E, pela primeira vez, a boca se rende aos olhos e ela suplica
nãão.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Aos Sonhos


Hoje sonhei estar cego. 
O mais estranho de sonhar com a cegueira não é o fato de não enxergar nada, mas sim de sentir absolutamente tudo. 
O que significa esse sonho? Não sei. 
De todo modo, todos sonhamos. Sonhar é que importa. Sonhar e acreditar! 
Não acreditar no sonho, mas acreditar na realidade por trás dele. O sonho é fantasia, mas leva consigo uma parcela vital de nossa realidade. 
O sonho é provocante porque nos incita repensar a vida.
O sonho é sensual e brinca de nos encontrar com o medo, com a paixão, com a reconciliação... e depois ri, debochadamente, da ingenuidade de quem sonhou. 
O sonho é sábio e nos traz lembranças das quais mais queremos esquecer, pois ele sabe: tomamos tanto tempo tentando esquecer que lembramos mais do que esquecemos. 
O sonho é maroto; nos faz pecar sem culpa e culpar os que pecam. 
E depois de cada sonho, trazemos à realidade a fantasia. Com ela, brincamos de refazer o passado, de imaginar o futuro, de ludibriar a razão. 
Somos escravos dos sonhos e da realidade; e a tênue linha que separa esses dois mundos é o maior dos parques de diversão. E para brincar, basta sonhar!

Quanto ao meu sonho, talvez realmente esteja cego pois não enxergo o que mais gostaria de ver. 
Ainda assim, sinto com tanta intensidade que é fácil brincar no mundo dos sonhos...

quinta-feira, 8 de março de 2012

À Gigante Figueira

     O sol arde as poucas nuvens esparsas pelo céu; está quente, tórrido e árido nessa época do ano. Não se tem mais notícias do passante moribundo que sempre lamentava à sombra da Figueira tamanho descaso do sol. Talvez tenha se perdido, as graças do vento que sopra no sul.
      Hoje não! Hoje é só a figueira e o sol. O resto é campo, é grama, secos desda última gota de chuva. E mesmo a Figueira, de raízes profundas, severa consigo mesma, chora suas últimas folhas. Estas estalam antes mesmo de tocar o chão. E o chão se racha antes mesmo da próxima folha cobrir-lhe a face. O vento, a chuva, o verde, todos se foram a exemplo do passante que hoje não veio. O sol não lamenta, tampouco se compadece da gigante Figueira. Arde de cima da copa e em cima da copa sentencia sua última folha que cai suave e serena, beijando, delicadamente, cada galho, sussurrando ao passante ausente toda honra das horas que passaram juntos. Sem tristezas, sem lamentos, sem cobranças. Apenas a simples sorte de terem, juntos, vivido em comum acordo de não questionarem seus devidos propósitos.
     Maldito sol, sofre a gigante Figueira, sofreu o passante.
     E então um som forte estremece o chão rasgado por trás da giganta Figueira. As nuvens emudecem o caudaloso sol, carregando todo céu de uma chuva forte e decidida. Raios queimam o céu sombrio e, apavorada, a pobre Figueira infla seu tronco de angústia e se inunda de vida. Por horas, a água permeia as rachaduras deixadas no chão e, aos poucos, todo cinza é verde, todo medo é paixão.
      Antes mesmo do sol voltar ao fim do dia, chega um passante e senta ao pé da gigante Figueira. Não é mais a mesma, agora tão mais alta, tão mais forte, tão mais verde! Porém, não é mais o mesmo passante. É outro. E, tomados de compaixão, contemplam juntos o sol arder seus últimos raios do dia, sem tristezas, sem lamentos, sem cobranças. Apenas a sorte de viverem juntos seus devidos propósitos.
       Bentito sol, contempla o passante ao pé da gigante Figueira.

Segue assim o fluxo da vida, simplesmente.